sexta-feira, 29 de junho de 2007

"não é muito difícil determinar a essência da "novela" como gênero literário: existe uma novela quando tudo está organizado em torno da questão "que se passou? que pode ter acontecido?". o conto é o contrário da novela porque mantém o leitor ansioso quanto a uma outra questão: que acontecerá?"

gilles deleuze & félix guatarri

marçal aquino



dia desses, passando por uma livraria, me dei com o seguinte título: "eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios". achei o título instigante. mostrei para a patrícia e ela também gostou. o autor é marçal aquino, escritor já conhecido na cena literária do brasil por seus romances que flertam com certa marginalidade e urbanidade extremamente atuais. aquino também é roteirista e o seu trabalho mais recente, o filme "o cheiro do ralo" mereceu de minha parte uma grande admiração.

foi por isso que convidei patrícia para irmos assistir essa semana a um bate-papo com ele. na hora da listagem dos livros, não foi sem surpresa que descobri ser ele o autor de um dos poucos livros que li quando criança e que não me esqueci: "os meninos da rua quinze" (não me lembrava era do nome do autor). me senti consubstanciado.

"fico instigado com esse jogo de, através de algumas palavras, faladas ou escritas, você disparar a imaginação de alguém", ele disse.

no meio das duas horas de conversa, ouvi ele dizer diversas vezes que se considera um autor realista. isso me deixou curioso. decidi que lhe perguntaria o que ele chama de realidade. me preparei, anunciei à moça do microfone que queria falar e eu seria então o quarto da fila.

nesse meio tempo, começou um longo assunto sobre seus roteiros. segundo ele, o que o fez começar a escrever seu livro "o invasor" (que virou roteiro antes de virar romance), foi uma conversa que teve com um empresário que dizia não ter nada a ver com a violência brasileira: não vê bandidos, seus filhos vão à escola em carros blindados, vivem todos numa casa linda e tranquila... "tem gente que pensa que pode viver fora da realidade", aquino falou. disso nasceu seu texto.

e eu, no final das contas, acabei por não fazer a pergunta que eu queria. perdi a vontade. as perguntas e as respostas se prolongavam demais e achei que àquelas alturas já não fazia mais sentido. mas passado o tempo, continuo com a dúvida. aquino se diz um escritor realista. mas o que será que podemos chamar "realidade"? será o que se passa em suas ficções? será o que se passa na vida e que o inspira a escrever seus romances? eu penso que todos podem se perder em discursos intelectualizantes e pseudo-filosóficos.

o que eu quero é somente aprender a lidar com essa massa que o ser humano inventou e que fez salvador dalí dizer: "um dia se verá que o que chamamos de real é mais assustador do que o sonho".



sábado, 23 de junho de 2007

notas sobre a realidade

podem dizer o que quiserem, aconteça o que acontecer, a realidade vai continuar sendo o maior enigma da humanidade. por isso, nunca entendo bem o que querem dizer quando falam “cai na real!” ou o famigerado “sejamos realistas!”

daí fui procurar uma meia dúzia de escritores pra tentar entender melhor. encontrei o cioran, que diz: “somente um monstro pode se permitir o luxo de ver as coisas tais como são. mas uma coletividade só subsiste na medida em que cria para si ficções".

o julio cortázar falou numa entrevista que é completamente apaixonado pela realidade, e isso é bastante significativo, em se tratando da fala de um cronópio. allen ginsberg achava que os seus escritos eram “sanduíches de realidades” e que ninguém estranhe o uso de alucinógenos para se enxergar melhor o tal do mundo, pois um sujeito que se achava mais sério já tinha tentado isso antes, o walter benjamin.

camille paglia, a contro(di)vertida filósofa norteamericana faz dessas palavras de george eliot as suas: “se tivéssemos uma aguda visão e sensação de toda vida humana comum, seria como ouvir a relva crescer e o coração do esquilo bater, e morreríamos desse rugido que está do outro lado do silêncio. na verdade, mesmo os mais rápidos de nós andam por aí bem acolchoados de bastante estupidez".

será por isso que shakespeare acha que “há mais coisas entre o céu e a terra do que vossa vã filosofia possa imaginar”? e o t.s.eliot, aquele inglês americano, em seu primeiro dos quatro quartetos acrescenta:

“vai vai vai disse o pássaro

o gênero humano não pode suportar

tanta realidade”

será que ele está falando da mesma coisa que a sua xará de sobrenome?

eu ouvi dizer que o freud, o nietzsche e o marx fizeram uma teorias bastante engenhosas sobre o assunto. se ninguém tivesse falado em realismo, ninguém falaria em surrealismo nem em realismo fantástico e nem em realismo mágico.

tudo bem, mas aqui no brasil, realidade quer dizer (pode perguntar para o senso comum) “aquilo que se lê nos jornais. e alguns se crêem informados sobre a “realidade” quando se dizem pessimistas ou mesmo quando falam de política.

mas o jogo da imprensa é tão ridículo como qualquer novela da globo: sem querer, ou às vezes querendo, a imprensa canoniza idéias mal-formuladas que se tornam grandes preconceitos para o populacho. populacho que, aliás, não está quase nunca preparado para assimilar conceitos, mas quase sempre está em ponto de bala para proferi-los como quem sabe da “realidade” (afinal, eu leio a veja toda semana)

dizem que a poesia é delírio. mas em meados do século xx, em lugares mais precários do nordeste onde não chegava a imprensa escrita (ou o povo não sabia ler) e mesmo o rádio só chegava cheio de chiado, ninguém acreditava em nada enquanto não vinha o cordelista com a sua rabeca e versejava as notícias tintim por tintim.

o conceito de realidade está muito ligado a seus inversos: ficção (que é a vida) e auto-engano. e eis que aparece eduardo giannetti dizendo “só engana a si mesmo quem não quer fazer isso.” e é por esse meio que acabamos por nos esquecermos de que a origem da incapacidade brasileira para falar de política não está na decepção, como supõe a maioria, mas por causa do medo (essa droga pesada): “se cumpade fala mau do patrão, o patrão vem e ouve e mata, sô!”

e assim a teoria da realidade acaba por engolir o próprio rabo, nos colocando de novo e sempre diante das velhas questões: o que é? quem é? como é? de onde emana? para que serve? somos nefelibatas então? é esse o enigma? a realidade é o jardim dos sendeiros que se bifurcam?